De vez em quando fico pensando o que conspirou para essa fase e, principalmente, seu fim. Até hoje não cheguei a uma conclusão. Suponho que simplesmente era mais fácil fazer coisas novas num mercado em que muito não havia sido explorado e para um público ainda “virgem” (em muitos sentidos). Os produtos não precisavam evitar milhares de coisas parecidas, os desenhos não tinham que ser tão bons, os livros podiam ser preto e brancos e a galera gostava de tudo do mesmo jeito. Depois o mercado amadureceu e ficou mais competitivo, muito mais competitivo (inclusive competindo com outras diversões que agradam o coração Nerd) .
Quem se interessa mesmo pela história do RPG pode dar uma lida na série do antigo site “Places to Go, People to Be”. Ela foi escrita em 1998-1999, pouco depois da falência da TSR (97) e dá para ver bem como a era dourada veio e foi. É bem legal porque revê o que aconteceu no hobby nos anos 70, 80 e 90 e é um retrato do clima do fim dos 90 – antes da “renascença” que foi a terceira edição do D&D. São 9 artigos, começando com o seguinte:
http://ptgptb.org/0001/history1.html
Mas voltando a minha historinha, e à época em que tudo era novo, voltemos o filme até os anos entre 94 e 96. O que eu estava fazendo nessa época?
Bom, o acontecimento mais marcante rolou em 94 ou 95 (não tenho certeza), quando dois caras novos entraram no colégio em que eu estudava (Colégio Jabaquara). Se tratavam de Samir e Daniel, o Gordão (ele nunca gostou desse apelido e minha consciência até pesa um pouco nesse aspecto – mas se eu não citá-lo vai ter gente que não vai saber de quem estou falando). Eles haviam estudado comigo no colégio Liceu Pasteur em torno de 89 e o Samir me reconheceu. Depois de re-estabelecida a amizade foi só questão de tempo até o RPG surgir nas conversas. Não tenho certeza se eles já haviam jogado antes ou jogaram pela primeira vez lá em casa, mas depois de um ou dois jogos eles comentaram que havia um grupo de caras que jogava aquele mesmo jogo em um lugar próximo ao Liceu Pasteur: a Gibiteca Henfil, ali na avenida Sena Madureira.
Eu fui conhecer o lugar e lá encontrei uns caras jogando GURPS com personagens absolutamente forçados. Era algo como um Super-Fantasy com personagens de milhares de pontos e nomes ridículos (como “Romário”, por exemplo), mas os caras se divertiam pacas.
Daí para frente passei a freqüentar a Gibiteca quase religiosamente, toda sexta à tarde. Por lá fiz grandes amigos e consegui o que chamo de “A Segunda Geração” de jogadores para o meu grupo (a primeira consistia da galera da minha rua). Já no primeiro dia conheci figuras como: Marafon, Jardim, Rocha, Érico e Terra-Nova e Parra (que talvez esteja na fila para jogar com Gygax e Arneson lá no céu). Eu também conheceria por ali o Zé, Ivan, Flexa e o Luís, que jogam comigo até hoje (embora o Zé e o Luís só tenham começado a freqüentar o grupo que rola na minha casa bem recentemente). Alguns outros eram menos presentes mas de vez em quando jogavam por lá: Piu-Piu (que re-encontrei agora na RPGCon depois de dez anos), Monstro (que me apresentou ao Battletech), e Mark.
Esse bando todo se juntava nas sextas para dar trabalho a duas pessoas que deveriam dispensar apresentações no meio de RPG: os grandes Klink e Silvana, que faziam o papel miserável de tomar broncas do pessoal da biblioteca (que ficava no andar de cima, bem ao alcance do nosso barulho) e explicar porque diabos aquele bando de arruaceiros não devia ser expulso dali. Nós devemos a eles um lugar onde jogar por anos, e o resto dos RPGistas devem as muitas EIRPGs, das quais sempre foram peças essenciais.
E foi assim que fiquei por um tempo, escrevendo uma aventura por semana e jogando duas! E isso por uns bons 2 ou 3 anos, façam a conta do número de sessões. Mas o que diabos nós jogávamos?
Da minha parte, fui me aprofundando no D&D, no Tagmar e no GURPS. As fotos espalhadas por essa postagem dão uma idéia do material que adquiri no período. Usando esses três sistemas eu mestrava cinco campanhas: uma de D&D, uma de Tagmar e três de GURPS, e cada semana jogávamos uma (levando 5 semanas antes de voltar na mesma campanha).
O D&D ganhou um impulso enorme quando coloquei minhas mãos na belezinha abaixo, indubitavelmente a jóia mais preciosa da minha coleção de RPG.
A campanha de Tagmar já era bem mais estruturada e um tanto mais séria. Diferentemente do D&D, onde a ausência de demônios era notável, o Tagmar explorava o assunto em profundidade e inspirava em mim o lado mais sombrio da fantasia medieval. Eu explorava um bocado o passado soturno do cenário (aquele texto do livro básico de Tagmar intitulado “Extratos do Livro de Maudi” é demais). É claro que com heróis poderosos a campanha não chegava a ser de terror, mas eu tentava ir criando um clima de tragédia iminente, como se os heróis fossem peça chave se opondo ao retorno da terrível Seita. Para dar uma idéia (e a pedido do supra mencionado Jorge) vou reproduzir aqui uma cópia de um dos textos que eu escrevi para esta campanha. Com exceção da introdução explicando do que se trata (em itálico) o texto é o original que escrevi com 15 ou 16 anos, então relevem uma certa pobreza de escrita:
Uma passagem de Tagmar
As outras três campanhas eram de GURPS. Eu já comentei aqui que o meu primeiro contato com o GURPS foi meio frustrante, mas bom... eu não sou de desistir. O empurrãozinho que faltava veio em um destes encontros de RPG, se não me engano no segundo EIRPG. Eu e meu irmão (e talvez algum dos outros da “primeira geração”) sentamos numa mesa de “X-Men 2099” eu não fazia idéia do que era mas enfim, tinha X-Men no nome. Era GURPS, usando regras do "GURPS Supers". Eu só me lembro de uma briga envolvendo um tal Hulk 2099. Para quem estava acostumado com os combates altamente abstratos de D&D e Tagmar, aquilo foi uma experiência inusitada. Em D&D você perde pontos, em Tagmar de vez em quando sai um crítico. Mas ali... Era braço quebrado, olho furado, personagem sendo lançado através de paredes, mísseis e balas voando – coisa de dar inveja a qualquer John Woo. Um único combate tomou 2/3 da aventura, mas foi inesquecível. Voltamos para casa cada um com os personagens que tínhamos usado, eu tirei o GURPS do armário e naquela semana eu e o Mauro ficávamos a noite tirando lutinhas, meu personagem contra o dele. Em pouco tempo eu sabia todas as regras de combate, e o resto é história.
Uma das campanhas de GURPS era de fantasia medieval (hehehe - tem uma tendência aqui ou não?), usando o mundo descrito no “GURPS Fantasy”. Em comparação com o D&D e Tagmar, que eram ambos “High-Fantasy” (muita magia, ações fantásticas e objetos mágicos), este aqui podia ser facilmente chamado de “very-low-fantasy”. Aqui a idade média entrava de sola nos personagens. Nada de armadura brilhante e cavalo branco! Só suor, sujeira e sangue. As regras do GURPS são muito boas para este tipo de campanha e o sistema de magia é perfeito. Também tentava minha mão no terror por aqui, mas não era o tema central como no Tagmar.
A segunda campanha de GURPS era de super heróis, ambientada em Nova York e em tempos atuais. Esta aproveitava uma interpretação menos mortífera das regras de combate do GURPS para criar os combates cinematográficos que eu havia adorado naquele jogo de X-Men 2099. Nesta campanha nós basicamente dávamos risadas, mas ainda assim eu insisti com todo mundo para que usassem o monte de pontos que tinham para fazer personagens que fizessem sentido. Conseqüentemente os super-heróis eram muito bem feitos, talvez os personagens mais completos de todas as 5 campanhas. Eles tinham até desenho!
A terceira campanha de GURPS era de ficção científica, que chamávamos de “NT10” seguindo a separação de “Níveis Tecnológicos” do GURPS. Eu sempre fui muito fã de sci-fi e tinha grandes idéias para essa campanha, mas de muitas formas todas falharam. O principal problema foi de imersão, que já derrubou muito projeto audacioso em RPG. Eu ia criando o universo conforme jogávamos e todo mundo, inclusive eu, teve dificuldades em realmente “sentir” a ambientação do jogo. Pior que continuo achando que o GURPS é perfeito para coisas de alta tecnologia, quem sabe um dia tento fazer uma campanha de GURPS-Battletech, usando a ambientação que é tanto acessível quanto fantástica (mas primeiro vou esperar para ver como fica isto aqui).
E quanto ao resto da galera? Eu acho que posso dizer que lá pela gibiteca o GURPS era basicamente dominante e muita gente mestrava. Além de fantasia e supers eu lembro de ter jogado tudo que é tipo de aventura usando GURPS, como por exemplo jogos de piratas (Jardim mestrando) ou Cyberpunk (com Marafon). Em geral as campanhas não duravam muito, sendo mais jogos únicos ou um encadeamento de 2 ou 3. Acho que o pessoal gostava mesmo era de experimentar, principalmente fazer personagens.
A exceção mais notável ao GURPS eram os jogos do Rocha, que mestrava Werewolf e outras coisas da Whitewolf, inclusive essa campanha de Werewolf é a mais longa que lembro de ter jogado por lá. O Ivan até tentou começar uma campanha de AD&D, mas não foi muito longe.
Tinha também algumas coisas mais alternativas:
- Rolou uma pequena febre de Battletech, no qual me viciei e me aprofundaria mais tarde.
- O Rocha arranjava uns sistemas alternativos de World of Darkness, como o Gárgula.
- Certa vez peguei o Mage e mestrei uma ou duas aventuras
- E em torno de 96, finalmente, apareceu o Call of Cthulhu. Eu joguei e depois mestrei uma ou duas aventuras prontas e na época ficou aquela sensação de “este jogo é phoda”. Mas eu só fui conseguir escrever aventuras para o Cthulhu bem mais tarde, o que contarei mais adiante.
Lá para o fim de 96, começo de 97, a queda de população nos EIRPG já me parecia visível. Os RPGistas, como bons humanos, foram achando os culpados.
Primeiro foram o jogadores de Vampire. Era fácil ouvir fãs de GURPs e AD&D, unidos pela primeira vez, dizendo em uníssono: “Esses caras estragaram as convenções, com essa mania de preto! Não sabem diferenciar a realidade da fantasia, por isso não vou mais.” E por aí vai.
Depois foi o Magic, ah o Magic... Lá na Gibiteca nós passamos pelo menos metade das sextas de 96 jogando nada mais que Magic. Aí quando chegavam os encontros e 2/3 do espaço era só gente jogando Magic a gente reclamava: “Magic não é RPG, a Devir agora só vende isso, não quer saber mais de trazer nada de RPG. E esses caras, ocupando NOSSAS mesas?”. Eu imagino o que seria do RPG sem o Magic. Será que a Devir teria sobrevivido sem vender Cards? E a Wizards of the Coast? O que seria do D&D depois da falência da TSR? Olhando em retrospectiva o Magic foi o hobby que financiou a 3ª Edição do D&D.
No fim de 96 eu mesmo estava prestes a enfiar o pé no freio em relação a toda essa “jogatina”, em fevereiro de 97 eu começaria o curso de Bacharelado em Física, e isso logo tomaria quase todo meu tempo. Eu ainda jogaria bastante aos sábados ao longo de 97 (obtendo inclusive a Terceira Geração de jogadores), mas as tardes na Gibiteca ficariam rapidamente no passado e logo eu não estaria jogando quase mais nada.
Mas isso é assunto para a próxima postagem.